No dia 16 de outubro de 1924, houve uma cisão na banda de Casal de Álvaro, em Espinhel (Águeda). A maioria dos músicos e o próprio maestro, Ludgero Pinheiro, abandonaram a associação e rumaram a Travassô, de onde eram originais, para aí criarem a Sociedade Recreativa e Musical, mais tarde conhecida por Orquestra 12 de Abril – foi nesta data, em 1925, que se deu a primeira atuação da nova banda.
No dia 16 de outubro de 2024, precisamente 100 anos depois desde esse momento de separação, cerca de 130 músicos das duas instituições subiram ao palco do Centro de Artes de Águeda para um concerto conjunto que marcou o arranque das comemorações do centenário da banda de Travassô.
Um “espetáculo histórico”, considera Óscar Saraiva, maestro da Banda Alvarense, e com “uma grande carga emocional para muitos dos presentes”, como foi o caso do presidente da câmara de Águeda, Jorge Almeida. Na opinião do autarca, “as pazes entre as bandas de Casal de Álvaro e de Travassô já foram feitas há muito tempo, mas a expressão pública deste momento foi muito importante” pois prova que “o tempo corrige tudo, põe tudo no sítio”.
“Veja-se como coisas que nos parecem tão más nos podem dar uma riqueza fantástica”, observou. “Foi bonito vê-los tocar em conjunto, pela simbologia que tinha associada, mas também porque ficou claro que são duas instituições grandes demais para se fundirem numa só”, afirmou o edil, que apelidou o espetáculo de “concerto-abraço”, uma expressão que, na visão de Óscar Saraiva, “demonstra fielmente a cumplicidade e momentos vividos em palco”. “A sensação em palco era muito boa e a alegria dos músicos era visível. Toda esta mística e simbologia permitiu aos músicos criarem ligações que, certamente, ficarão para o futuro”, concorda Luís Cardoso, maestro da Orquestra 12 de Abril.
Este “abraço” de que fala Jorge Almeida, concretizou-se, por exemplo, através da “devolução” de um dos instrumentos – um trombone de pistões – que, na altura da cisão, foi levado para Travassô e nunca, em cem anos, havia voltado a Casal de Álvaro. “Conta-se que os músicos que abandonaram a Banda Alvarense para formar a Banda de Travassô levaram os instrumentos consigo. Ora, como os instrumentos eram valiosos e difíceis de adquirir, isto criou uma celeuma com direito a tribunal e tudo”, enquadra Luís Cardoso. “O instrumento [devolvido durante o espetáculo da passada semana] tinha umas mossas que, não me admiraria, ainda fossem mazelas da ‘pancada’ de há 100 anos”, brincou o autarca aguedense. Para os maestros, contudo, este gesto simboliza “um ‘virar de página’, representando a “relação vindoura de amizade entre todos”.
Tratando-se de um concerto de celebração de um século de legado – além da música, o espetáculo incluiu uma contextualização da história que une as duas instituições –, a opção passou por seguir “um alinhamento mais tradicional, sem repertório mais contemporâneo ou disruptivo”. “São peças que os músicos já conheciam, que já tinham interpretado anteriormente ou, pelo menos, ouvido outros a tocar”, explica Luís Cardoso.
O concerto abriu com a marcha “Camisas Verdes” (Cpt. Amílcar Morais), um tributo ao antigo grupo musical de jazzes da Banda Alvarense que “exerceu atividade intensa entre os anos de 1940 e 1970 e tinha nas suas fileiras grandes e admiráveis músicos”. Seguiu-se a “Rienzi” (Wagner), uma peça clássica, e depois a zarzuela “La Leyenda del Beso (Soutullo y Vert). O concerto prosseguiu com um “Concerto para Clarinete” (Artie Shaw) – Os concertinos Carlos Filipe, da Banda Alvarense, e Carlos Eduardo, da Orquestra 12 de Abril, protagonizaram uma brilhante performance jazzística em dueto. “Foram ambos meus alunos no Conservatório de Música de Águeda e tive grande gosto em ser o maestro desta obra”, repara Óscar Saraiva. O concerto terminou com um arranjo sobre temas populares portugueses – “Canções da Tradição” (Luís Cardoso) e com a marcha “12 de Abril” (Cpt. Amílcar Morais).
Com cerca de 130 músicos de duas coletividades diferentes em palco e dois maestros que se iam revezando, o mais difícil, atesta Luís Cardoso, foi “coordenar as agendas das duas bandas”. Igualmente desafiantes foram “os acertos entre naipes e a necessidade de adaptação rápida dos músicos a gestos diferentes entre os dois maestros”, bem como “a questão da afinação” que, “num grupo que não está habituado a trabalhar em conjunto, é sempre um pouco mais complicado de controlar”, acrescentou Óscar Saraiva. Ainda assim, garante o maestro alvarense, “a dificuldade que poderia ser expectável, derivada de alguma resiliência e rivalidade histórica, não existiu”. “A rivalidade entre estas bandas é, de facto, coisa do passado”, conclui.
Unidas pelo momento que as separou
“Há 100 anos, só existia a Banda Alvarense”, introduz Nuno Amorim, presidente da direção daquela coletividade – a Sociedade Musical Alvarense, mais conhecida por Banda Alvarense, havia sido fundada a 25 de agosto de 1905. “No entanto, precisamente no dia 16 de outubro de 1924, o maestro e mais de metade dos músicos abandonaram a banda”, prossegue o dirigente, explicando que, “como eram quase todos de Travassô, chegaram à conclusão de que deviam formar uma banda na sua terra”.
Hélder Pires, presidente da direção da Orquestra 12 de Abril, por seu turno, suspeita que algo mais possa ter acontecido. “Ninguém sabe o que, verdadeiramente, terá motivado aquela separação. Não há nada escrito sobre isso. Mas, obviamente, não terá sido por uma desavença menor ou um problema isolado. Não foi, com certeza, de ânimo leve que a maioria dos músicos e o maestro desertaram. Ter-se-á devido, seguramente, a uma série de situações graves”, expõe o dirigente, confirmando que “o facto de serem de Travassô também pode ter pesado na decisão”.
Outro motivo, supõe Hélder, pode ter sido o “cariz muito republicano” da Banda Alvarense, em oposição ao “movimento pró-monárquico” que se vivia em Travassô naquele período instável da Primeira República. “Repare-se que a Banda de Travassô adotaria o azul e branco [cores tradicionalmente associadas à monarquia portuguesa], assumindo o contraste com a bandeira vermelha [cor revolucionária e ardente, a mesma da bandeira da causa republicana] da Banda Alvarense”.
De acordo com Hélder Pires, “no início, as relações [entre as duas instituições] eram péssimas, mas com o passar do tempo foram melhorando”. “É um pouco como os clubes de futebol. Se, por vezes, o clube da terra tem de defrontar o clube da terra vizinha, cria-se sempre uma certa rivalidade. E isso também acontece nas bandas. Ainda hoje, quando duas bandas participam na mesma festa, estão numa espécie de ‘duelo’ uma com a outra”, compara. “Só começou a haver um verdadeiro entendimento depois da fundação, em 1988, da UBA – União de Bandas de Águeda –, que reúne todas as bandas do concelho à mesma mesa”. “A partir do aparecimento da UBA, todas as rivalidades existentes – não só entre a Banda Alvarense e a 12 de Abril, mas também entre as várias bandas do concelho – acabaram por se atenuar”, confirma Nuno Amorim.
Afonso Ré Lau